Como começar a cultivar um diálogo mais gentil com você
A exaustão de quem nunca pede ajuda
A luz do fim da tarde atravessava as cortinas finas da sala. Na mesa do escritório improvisado, ainda repousava a xícara de chá de camomila da noite anterior, agora com uma pequena mancha seca no fundo. Lívia, sentada ali desde cedo, girava entre os dedos a aliança antiga da avó — um gesto repetido de quem busca respostas em um objeto carregado de histórias. O telefone, quieto sobre a mesa, parecia conter todas as respostas. Ela sabia que a ligação viria por ali.
Tinha se preparado com tanto zelo para aquele momento. Currículo revisado com cuidado, portfólio digital construído com esmero, cursos de atualização feitos entre uma madrugada e outra, sempre depois que os filhos adormeciam. Um blazer cor de areia, ainda com a etiqueta, estava pendurado fora do guarda-roupa — escolhido com carinho para o primeiro dia da tão sonhada volta ao jornalismo.
O telefone tocou. Era um número conhecido e, mesmo antes de atender, Lívia já sentia o frio se espalhando pelo estômago. Pegou o celular com mãos trêmulas, levantou-se em direção à janela, preparou o sorriso — aquele que usava para parecer forte e simpática — e atendeu.
A voz do outro lado era neutra, quase ensaiada. "Optamos por seguir com outra candidata." Não houve pausa para empatia, nem espaço para história. Apenas o encerramento apressado: "boa sorte nas próximas oportunidades."
Ela agradeceu. Ainda com o celular na mão, sentou-se lentamente, como se o corpo estivesse mais pesado que antes. O blazer cor de areia, deixado pendurado como símbolo de esperança, agora parecia um lembrete incômodo de algo que não aconteceu. Não teve coragem de tocá-lo. Ficou ali, à espera.
Naquela noite, passou horas deitada, os olhos fixos no teto do quarto, como se esperasse encontrar ali alguma resposta. As mãos cruzadas sobre o peito tentavam conter uma dor que não era nova, mas que naquela noite havia ganhado corpo. Os ruídos da cidade entravam pela janela entreaberta, misturando-se aos seus pensamentos que, de tão carregados, eram difíceis de compreender.
Sussurrou para si, quase sem voz: "Acho que não sou mais tão boa assim, já estou muito velha". E, por alguns instantes, pensou em desistir. Seus pensamentos não eram apenas sobre o emprego. Eram sobre o tempo que passou e a sensação de não se reconhecer mais na própria trajetória.
Lembrou da caixa de memórias guardada no alto do armário. Subiu na pequena escada do closet com cuidado e a trouxe para o chão do quarto. Recortes de jornais, cadernos antigos com anotações à mão, credenciais de eventos que cobriu, fotos com sorrisos que pareciam mais espontâneos do que os de agora. Ela havia sido uma jornalista de sucesso, com um cargo alto numa grande revista, que fechou anos depois do nascimento dos filhos.
Nessa caixa cabia parte da sua história, seu talento, sua paixão. Mas naquele momento, tudo parecia empoeirado, como um livro que ninguém folheia há muito tempo.
Tirou do cabide a blusa nova que havia comprado imaginando o primeiro dia do novo trabalho. Deixou-a sobre a cama, ainda com a etiqueta presa na manga. Deitou-se ao lado dela, sentindo o tecido frio contra o braço. Fechou os olhos e respirou fundo, como se pudesse, por osmose, absorver o futuro que desejava — e que, por enquanto, não havia chegado.
No dia seguinte, resolveu ligar para Clara, sua amiga de longa data. As duas riram, falaram dos filhos, da rotina, do tempo que não dava trégua. Mas quando Lívia mencionou a entrevista, a voz embargou. "Eu achava que era a minha vez", disse. Clara ficou em silêncio por alguns segundos e respondeu com doçura:
— Lívia, eu sei como dói quando o mundo não vê tudo o que a gente carrega. Mas você não é essa resposta. Nem esse não. Você é muito mais do que isso.
— Eu me sinto tão... insuficiente. — Lívia sussurrou, parecendo confessar um segredo.
— Amiga, você só está cansada de ser forte e boa o tempo todo. — Clara continuou. — E estar cansada não é fracassar. É ser humana.
Do outro lado da linha, as palavras entraram como bálsamo. Não eram conselhos prontos, nem frases feitas — era um tipo de acolhimento que Lívia não estava acostumada a receber.
Naquela noite, o cheiro de arroz soltinho e legumes refogados se espalhava pela cozinha. A toalha estampada, os copos coloridos dos filhos, o som dos talheres batendo nos pratos: tudo parecia tranquilo, quase como uma cena de propaganda — a família reunida, as risadas gostosas das crianças, o marido servindo suco de laranja.
Mas por dentro, Lívia estava em pedaços.
Tinha passado o dia inteiro tentando parecer bem. Levou os filhos à escola, fez supermercado, respondeu e-mails. Sorriu nas videochamadas com os pais, mandou figurinhas engraçadas no grupo das amigas. Mas ali, diante da família, aquele esforço inteiro começava a fraquejar.
— E aí, mãe? — perguntou o mais velho, com os olhos cheios de esperança. — Você conseguiu aquela vaga no jornal?
O marido, sentado ao lado, interrompeu o corte do frango e olhou para ela com um gesto sutil de atenção. Ela respirou fundo. Engoliu a resposta antes da fala. Depois disse, com uma voz mansa:
— Não dessa vez, meu amor. A vaga ficou com outra pessoa.
Houve um breve silêncio. Os irmãos se entreolharam, e então o mais novo falou:
— Tudo bem, mãe. Você vai achar outra coisa incrível. Porque você sempre acha um jeito de fazer as coisas ficarem boas.
O mais velho completou, segurando sua mão por debaixo da mesa:
— E a gente sempre vai gostar de você, tá?
O marido se aproximou e beijou o alto da cabeça dela.
— A gente sabe que você é incrível.
Ela não conseguiu responder. Apenas deixou que as lágrimas viessem, discretas, leves. Seus filhos eram adolescentes. Lívia havia decidido que era a hora certa de retomar uma profissão que amava, mas que havia deixado em segundo plano para se dedicar à maternidade. Sua decisão de voltar ao jornalismo era fortemente incentivada pelos filhos e marido, mas ela temia que, ao não conseguir essa vaga, a admiração que eles tinham por ela se perdesse.
Três dias depois, sentada com seu caderno de anotações, Lívia escreveu como se fosse para uma amiga: “Se fosse comigo, eu diria: você é incrível. Não desista. A sua porta ainda vai se abrir.”
Ao escrever essas palavras, algo dentro dela se organizou. Pela primeira vez em semanas, sentiu que podia se escutar com mais gentileza. Como se, ao oferecer acolhimento a uma versão imaginária de si, fosse capaz de estender esse cuidado à mulher real, presente, que respirava diante da página em branco.
O coração, ainda doído, deu espaço para uma curiosidade nova: e se houvesse outros caminhos? E se ela não precisasse mais esperar por uma aprovação externa para voltar a se movimentar? Lentamente, começou a revisitar seus antigos textos. Viu ali uma potência que não tinha morrido — apenas estava adormecida, esperando ser reencontrada.
Inspirada por uma conversa num podcast sobre recomeços, criou um perfil discreto no Instagram. Começou a entrevistar mulheres como ela: mães, profissionais, sonhadoras em transição profissional — que também carregavam histórias entre a pausa e o recomeço.
Ela ainda não tinha um novo emprego. Mas havia reencontrado a própria voz. E, pela primeira vez em muito tempo, sentia que estava sendo escutada… por ela mesma.
Entre nós…
Você também tem essa voz da autocrítica?
Ela chega devagar, como quem não quer atrapalhar. Aparece quando as coisas não saem como você imaginava. Em vez de perguntar se você está bem, ela quer saber onde você errou. Em vez de acolher, julga. Em vez de entender, exige. Como se o seu valor estivesse sempre em xeque.
Talvez a voz da autocrítica tenha nascido lá atrás, quando aprendemos que nosso valor depende da nossa performance. Acreditamos que só somos dignas de amor, respeito e reconhecimento quando somos produtivas, agradáveis, eficientes. E, quando não conseguimos manter esse padrão, algo dentro de nós desmorona.
Essa voz crítica pode ter começado como proteção: uma tentativa de evitar críticas externas, de se encaixar, de se manter segura. E, com o tempo, ela parou de proteger, e passou a ferir.
Hoje, deixo a pergunta: Você falaria com uma amiga, que está passando por um momento difícil, da mesma forma que fala com você em situações desafiadoras?
A psicóloga Kristin Neff, referência mundial no estudo da autocompaixão, nos convida a transformar esse diálogo interno. Ela propõe que aprendamos a nos tratar com a mesma gentileza que ofereceríamos a uma amiga. Isso não significa ignorar erros ou fingir que está tudo bem. Significa reconhecer nossas dificuldades com humanidade e cuidado.
A Autocompaixão Inclui três pilares: reconhecimento da humanidade comum (reconhecer que errar é parte da experiência humana), atenção plena (cultivar presença) e bondade consigo (especialmente nos momentos em que mais se sente frágil).
“Quando estamos conscientes de nossas dificuldades e respondemos a nós mesmos com compaixão, gentileza e apoio nos momentos de dor, as coisas começam a mudar.”
— Kristin Neff & Christopher Germer, Manual de Mindfulness e Autocompaixão
Cultivar esse novo olhar não é simples — principalmente quando passamos a vida acreditando que autocuidado é egoísmo, e que ser dura é ser madura. Mas a verdade é que, sem essa escuta gentil, a exaustão vira rotina, e a autoestima vira saldo negativo.
Como começar a cultivar um diálogo mais gentil consigo mesma
Não existe uma fórmula rápida. Mas existem práticas que, quando repetidas com consistência, começam a transformar a forma como nos escutamos. Aqui vão três delas.
Observe sua voz interna com curiosidade, não com julgamento
Repare nas frases que você repete mentalmente quando algo dá errado. Anote essas frases em um caderno. Depois, leia como se uma amiga tivesse dito aquilo sobre si mesma. O que você responderia a ela? Essa prática ajuda a criar distância entre o que você sente e o que você acredita. E começa a abrir espaço para uma escuta mais amorosa.
Crie uma frase de apoio para os momentos difíceis
Escolha uma frase que traga acolhimento. Algo que você gostaria de ouvir quando está se sentindo pequena ou exausta. Pode ser: “Eu estou fazendo o melhor que posso”, ou “Não preciso me provar o tempo todo”. Deixe essa frase perto: na agenda, no espelho, no plano de fundo do celular. Ela será um lembrete para momentos difíceis.
Pratique pequenos gestos de gentileza consigo ao longo do dia
Não espere o colapso para se cuidar. Permita-se pequenas pausas, escolhas que te nutram: um banho mais longo, um chá preparado com calma, o direito de dizer “não”. Cada ato de cuidado reforça uma mensagem de aceitação.
Como a meditação pode ser aliada
Pode parecer algo pequeno, quase invisível. Mas transformar a forma como você fala consigo mesma é um dos passos mais profundos (e libertadores) que alguém pode dar. Porque o modo como nos tratamos nos momentos difíceis não só revela nossa autoestima, mas também a nossa capacidade de recomeçar sempre que necessário.
E é aqui que a meditação de autocompaixão pode ser uma grande aliada.
Esse tipo de prática é diferente de outras abordagens. Ela foi desenvolvida para criar um espaço seguro dentro de você, onde pensamentos difíceis e emoções desconfortáveis possam ser acolhidos, em vez de ignorados ou combatidos.
Ao desenvolver a habilidade de reconhecer nossas dores sem julgamento, a meditação de autocompaixão nos ajuda a suavizar o tom da nossa voz interior, criando espaço para mais compreensão, paciência e cuidado.
Na prática “Entendendo Suas Crenças”, disponível na plataforma Serenara, você será conduzida com delicadeza a observar quais pensamentos e padrões têm guiado suas escolhas e comportamentos. Essa meditação é um convite para identificar, com honestidade, as crenças que você carrega (muitas vezes herdadas, muitas vezes silenciosas) e começar a transformá-las com mais consciência e liberdade interior.
Com carinho,
Valentina
Referências
Kristin Neff & Christopher Germer. Manual de Mindfulness e Autocompaixão: Um Guia para Construir Forças Internas e Prosperar na Arte de Ser Seu Melhor Amigo