Olívia estava atrasada. Sua lista de tarefas naquele dia parecia interminável. Apesar de já ter riscado boa parte das demandas, ainda restava um compromisso importante: o último ensaio antes da estreia da peça de teatro, em que atuaria como protagonista. Embora fosse arquiteta em tempo integral, dedicava as horas vagas a atividades diversas — e, nos últimos dois anos, havia se entregado com mais paixão à atuação. Estava gostando muito. Sentia-se viva de um jeito que o trabalho formal não costumava permitir.
Com pressa, abriu o guarda-roupa e sentiu o desconforto habitual. Cada peça pendurada parecia contar a história de uma mulher diferente: o vestido floral dos ensaios, as roupas formais do escritório, a camiseta larga dos domingos com o namorado. Havia ali uma cronologia de personagens. O armário mais parecia o acervo de um figurinista do que um guarda-roupa comum.
A questão não era estética, exatamente. A dúvida não era sobre o que vestir, mas quem vestir. Após o ensaio, havia um jantar com colegas do trabalho. Não podia estar formal demais para o teatro, nem informal demais para o restaurante. E, mais do que isso, desejava que, por uma vez, sua roupa não parecesse um disfarce.
Respirou fundo, olhou o relógio e voltou ao armário. Escolheu uma calça de linho crua e uma camisa azul-clara — simples para o palco, elegante para o jantar. Prendeu o cabelo num coque despretensioso, passou um batom quase invisível e pegou a bolsa. Já estava atrasada, mas o tempo parecia menos urgente do que a pergunta que lhe fazia companhia: quantas versões de si mesma ainda precisaria administrar?
No teatro, o corpo tomou o comando. O texto fluía. As emoções vinham inteiras. Havia algo de profundamente libertador em dar vida a outra mulher. Talvez porque, ali, ninguém exigia coerência. Ali, ela podia ser muitas, sem precisar se esconder.
Depois do ensaio, uma troca rápida no banheiro. Trocou os tênis por sapatos de salto, soltou o cabelo, ajeitou a camisa. No espelho, se perguntou: "será que ainda sou eu?"
No restaurante, havia luzes amareladas, cardápio sofisticado, conversas cheias de ironia e análises sobre mercado, arquitetura, prazos, clientes. Ela ouvia gentilmente, sorria, e comentava com elegância. Mas, por dentro, sentia suas palavras virem de um lugar distante. Como se estivesse em cena, outra vez.
Quanto mais experiente, mais papéis sabia desempenhar. Mas era impossível ser protagonista de tantas histórias. Ser muitas, aos poucos, parecia também não ser nenhuma. Sentia que habitava uma casa com muitos espelhos — e em cada reflexo, havia uma identidade parcial, fragmentada.
Na volta para casa, caminhou devagar. O barulho dos sapatos ecoava mais alto do que suas certezas. Subiu as escadas, abriu a porta e largou a bolsa na sala. Não estava cansada do dia. Estava cansada de se questionar.
Recentemente, havia reencontrado uma conhecida numa aula de beach tennis. A mulher comentou como Olívia parecia diferente. Quase outra pessoa. A observação, que mais pareceu um julgamento, permaneceu em sua mente, com um ar de incômodo persistente. Ela não se sentia tão diferente assim. O que teria mudado?
E então percebeu: não era sobre ter mudado ao longo dos anos, mas sobre se adaptar o tempo inteiro. Cada ambiente exigia uma fala, um gesto, um comportamento. No beach tennis, era diferente de quem ela havia sido no passado. E isso fazia sentido. Mas o que a incomodava era a ausência de uma voz própria entre tantas adaptações. Era como viver em tradução simultânea, sem nunca retornar à língua de origem.
Naquela noite, antes de deitar ao lado do namorado, sentou-se diante do armário ainda entreaberto e perguntou:
— Você acha que eu mudo dependendo da companhia?
Ele hesitou, depois respondeu:
— Acho que sim. Às vezes, até o jeito de respirar parece outro.
Ela riu. Mas, por dentro, o incômodo aumentou.
No domingo, Olívia cancelou todos os compromissos e decidiu visitar a avó. Havia algo reconfortante naquela casa de paredes descascadas e janelas largas que davam para o quintal. Era onde passava suas férias quando pequena.
A avó a recebeu com um café forte e bolo de fubá. Conversaram por horas sobre tudo. A avó ria com os olhos, e Olívia se lembrava de como aquela voz era uma das suas primeiras sensações de segurança no mundo.
No quarto da infância, encontrou uma caixa de madeira: desenhos, cartinhas com cheiro de tutti-frutti, uma fita azul, uma foto com um vestido amarelo costurado pela avó. Folheando os desenhos, lembrou que amava imaginar casas. Portas redondas, janelas em forma de flor, escadas que levavam a bibliotecas secretas. Amava nomear as coisas. Contar histórias. Inventar mundos.
E ali entendeu: havia coisas que sempre foram dela. Não eram personagens. Eram memórias. Partes vivas que resistiram ao tempo. Seu mundo interior nunca deixou de existir, apenas ficou abafado sob as camadas de tudo que esperavam que ela fosse.
Naquela noite, Olívia começou a perceber, com mais clareza, pequenas preferências que não eram suas. A playlist que ouvia todos os dias de manhã, por exemplo, havia sido feita pelo namorado. Eram músicas que ela tolerava, mas não amava. O tipo de café que tomava? Uma marca que comprava desde que começou a trabalhar porque uma colega recomendou. Os filmes preferidos do grupo de amigas, ela apenas fingia gostar. O perfume adocicado que usava há anos havia sido influência de uma propaganda, embora preferisse aromas mais amadeirados.
Também se deu conta de que amava ser arquiteta, mas detestava a rotina entre prazos e burocracias. E no teatro, encontrava uma forma de dar vida às tantas outras personagens que ela não podia ser. Era o palco que lhe devolvia a liberdade de transitar entre muitas histórias.
Era como se pequenos ajustes tivessem sido feitos ao longo do tempo, sempre para agradar, encaixar ou facilitar. E, sem perceber, foi ficando apertada dentro de escolhas que não partiam dela.
Decidiu, naquele momento, dar menos peso às opiniões externas e à necessidade constante de agradar. E começar, aos poucos, a se ouvir com mais delicadeza.
Como quem reencontra uma amiga antiga e, pela primeira vez em muito tempo, não precisa se apresentar de novo.
Cá entre nós
Você também se sente fragmentada entre muitas versões?
Tenho pensado muito sobre como o tempo em que vivemos, as nossas relações e o nosso ambiente moldam significativamente aquilo que desejamos. Me pego refletindo se aquilo que eu realmente gosto e almejo é nato (me pertence, é meu), ou se é uma contrução social. Vou ilustrar melhor: meu desejo de voltar a praticar yoga é uma necessidade intrínseca minha ou é fruto de trends virais do TikTok de meninas vestidas com roupas coladas demais praticando rotinas de Wellness? O que é meu, de fato?
Então eu lembro que meu interesse por yoga é antigo, desde minha adolescência. Desde muito antes do Tiktok existir.
Eu conheço pessoas que mudaram radicalmente depois que iniciaram um relacionamento, ou começaram um novo emprego. A urgência por pertencer a esse novo espaço fez com que traços muito marcantes da identidade dessas pessoas fossem apagados com o tempo.
Muitas de nós crescemos aprendendo que a aceitação vem da adaptação. Aprendemos a ser queridas, prestativas, convenientes. Desenvolvemos a habilidade de nos ler através dos olhos dos outros — e assim vamos afinando nosso tom para caber. Mas o custo disso pode ser alto: confusão interna, autocrítica constante, um sentimento de que estamos sempre um pouco fora de lugar.
Na psicologia, isso tem relação com a Teoria da Autodeterminação, que nos mostra que existem duas formas principais de motivação: a extrínseca (quando fazemos algo por expectativa ou aprovação externa) e a intrínseca (quando fazemos por desejo genuíno, por valor pessoal).
Três condições são necessárias para que a motivação seja verdadeiramente autêntica, ou seja, intrínseca: autonomia, competência e pertencimento. A autonomia diz respeito à liberdade de fazer escolhas alinhadas aos próprios valores e desejos internos. A competência é o sentimento de se sentir capaz e eficaz naquilo que se faz. E o pertencimento é o vínculo genuíno com os outros.
À medida que um comportamento se torna cada vez mais controlado por recompensas externas, nos sentimos menos no controle do nosso comportamento e a nossa motivação intrínseca diminui, nos tornando menos autodeterminadas. Isso explica por que, por exemplo, perdemos o interesse ao monetizar um hobbie: uma atividade antes muito prazerosa (motivação intrínseca) agora é remunerada (motivação extrínseca).
Esse desequilíbrio entre o que desejamos internamente e o que fazemos para sermos aceitas externamente nos afasta do nosso senso de verdade. E quando essa desconexão se torna constante, acabamos vivendo em função narrativas antigas — padrões, crenças e medos que muitas vezes nem percebemos, mas que o cérebro ativa para tentar organizar o que sentimos.
˜O que seu cérebro está fazendo é contar a si mesmo uma história sobre o que está acontecendo dentro do seu corpo em relação ao que está acontecendo no mundo. Ele está criando essa história usando o conhecimento sobre emoção que você aprendeu no passado para prever o que vai ver, ouvir e sentir. Isso é o que é uma emoção... E também é uma explicação de como todo pensamento, todo sentimento, toda decisão, toda ação que você já tomou em toda a sua vida é feita.” — Lisa Feldman Barrett, autora do livro How Emotions Are Made
Como encontrar o que te move de verdade
Quando passamos muito tempo tentando agradar ou caber em moldes que não são nossos, é fácil perder de vista o que realmente nos move. Abaixo, três formas de encontrar (ou reencontrar) suas motivações internas.
1. Volte ao que te encantava quando ninguém esperava nada de você
Antes das expectativas, dos cargos, das listas e dos medos, o que fazia seus olhos brilharem? Que brincadeiras você criava sozinha? Que histórias gostava de imaginar? Resgatar essas lembranças é uma volta deliciosa ao seu passado, e também uma forma de identificar aspectos importantes da sua personalidade.
2. Diferencie desejo de dever
Ao pensar em suas metas atuais, pergunte-se: isso vem de um “quero” ou de um “devo”? O que nasce da vontade tende a ser mais duradouro, mesmo quando exige esforço. O que vem apenas da obrigação pode gerar reconhecimento externo, mas não costuma ser tão prazeroso.
3. Observe quando o tempo desaparece
Quais atividades te absorvem tanto que você nem percebe o tempo passar? Isso é um bom indício de motivação intrínseca — o prazer de fazer algo pelo simples fato de fazer. Cultivar esses momentos, por menores que sejam, é uma forma de se aproximar da sua verdade.
Como a meditação pode ser aliada
Se você está passando por um momento como o de Olívia — tentando descobrir quais escolhas são suas e quais vieram de fora, a meditação pode ser uma grande aliada nesse processo de reencontro consigo. Ao trazer a atenção para o momento presente, sem julgamentos, ela cria um espaço seguro onde você pode observar seus pensamentos, suas emoções e suas angústias com mais paciência.
A meditação "Liberando a Pressão Social", da plataforma Serenara, foi criada especialmente para apoiar mulheres como você, que desejam se reconectar com o que é verdadeiro, autêntico e essencial em si mesmas. Essa prática guiada convida você a respirar com consciência, acolher o cansaço das expectativas e soltar, aos poucos, as camadas que já não fazem sentido. Ao longo da meditação, você é conduzida a um lugar interno de calma e clareza.
Acesse agora a plataforma Serenara e experimente essa meditação. Pode ser o começo de uma nova relação com você mesma.
Com carinho,
Valentina
Referências
Deci, E. L., & Ryan, R. M. Self-Determination Theory. Guilford Press, 1985.
The biggest myths about emotions, debunked | Lisa Feldman Barrett. Youtube.
Verywell Mind. Self-Determination Theory in Psychology. https://www.verywellmind.com/what-is-self-determination-theory-2795387
Verywell Mind. How the Overjustification Effect Reduces Motivation. https://www.verywellmind.com/what-is-the-overjustification-effect-2795386