
O corpo fala o que a mente silencia
Era fim de tarde de um dia de verão. O calor era refletido nitidamente pelo asfalto, que exalava fumaça quente, e os vidros espelhavam o sol alaranjado do entardecer. Sara costumava passar por aquela rua todos os dias ao final do expediente, em direção ao estacionamento. Levava sua bolsa de tecido ecológico apertada contra o peito, embora pesasse muito pouco. A bolsa era uma espécie de âncora emocional. Quase como uma troca de favores: ela segurava a bolsa, e a bolsa, de algum modo, segurava ela de volta.
Ao dobrar a esquina, repetia seu ritual diário: conferir o cabelo na vitrine de uma antiga loja de espelhos. Os espelhos expostos eram de vários tamanhos, o que fazia sua imagem parecer um pouco diferente em cada um deles. Era como se ela pudesse se enxergar pelo olhar de várias pessoas ao mesmo tempo.
Ultimamente, vinha percebendo sua expressão mudar ao se ver projetada naquela vitrine. Dia após dia, o rosto ia parecendo ainda mais cansado, e a postura, mais contraída. Naquele tarde, a imagem refletida era muito mais densa: peito apertado, pernas trêmulas, uma lágrima ameaçando escapar. Por isso, preferiu ignorar rapidamente a vitrine e seguir seu trajeto.
Foi então que um homem apressado, sem desviar o olhar do celular em sua mão, a empurrou na calçada. O impacto foi pequeno, mas suficiente para aflorar uma série de emoções esquecidas. Sara congelou no meio da rua e, embora sua mente estivesse carregada de todos os possíveis xingamentos, não esboçou nenhuma reação. Apenas viu o homem continuar seu caminho, como se nada tivesse acontecido.
Por meses, talvez anos, Sara se escondeu em uma rotina intensa. Trabalhava até tarde e descansava vendo posts infinitos nas redes sociais. Mantinha-se acordada a base de café, um atrás do outro. Estar ocupada era mais fácil do que encarar o cansaço e as dores do próprio corpo, mas também uma forma de encontrar valor em uma sociedade que premia o esforço infinito.
— “Quando me aposentar, eu descanso.” Repetia, quase diariamente.
O que ela não percebia é que estava apenas reproduzindo um discurso antigo, que ouvira quando ainda era jovem demais para entender o que significava. Possivelmente, mesmo adulta, ainda não compreendesse de fato o peso da frase (muito menos suas consequências). Afinal, nunca houve tempo para refletir sobre ela.
Ao encontrar seu carro no estacionamento quase vazio, a armadura desmoronou antes mesmo de ligar o motor. Com as mãos presas ao volante, o coração acelerado, a respiração curta e o peito doendo, o choro desabou. Não era um choro bonito ou controlado, digno de novela. Era um choro bagunçado, trêmulo, denso, involuntário. Uma manifestação pouco contida do próprio corpo.
As mãos que antes agarravam com força o volante se desprenderam e repousaram sobre o peito, como se ela dissesse para si mesma: “Eu estou aqui.”
Aos poucos, o resto do corpo foi cedendo às emoções. Dessa vez, ela não controlou o choro, nem as expressões, nem a postura. Tampouco se preocupou se alguém estava observando a cena que, vista de fora, era um pouco patética. Apenas se entregou.
Sara havia enfrentado situações difíceis ultimamente: conflitos no trabalho, projetos sem prazo, conversas dolorosas com pessoas queridas. Mas só começaria a lidar com cada frustração, angústia e emoção mais tarde. Era como se, dentro dela, houvesse uma gaveta com a etiqueta “Para resolver quando me aposentar…”. Uma gaveta reservada ao descanso que ela empurrava para uma data distante — e também para sentimentos complexos demais para compreender agora.
Ao chegar em casa, decidiu adiar algumas tarefas sempre tão urgentes. Em vez disso, optou por um banho quente e algumas horas de silêncio. E, nesse espaço, ouviu algo que nunca havia percebido. Não era um barulho externo, mas pensamentos sutis em meio às vozes que habitavam sua cabeça.
Pequenas reflexões, como sussurros, dizendo que era hora de relaxar. Relaxar a postura do corpo: soltar o maxilar tenso, os ombros contraídos. Mas também relaxar a postura diante da vida. Soltar o controle.
Essa mudança exigia uma auto-observação mais cuidadosa, mas ela sentia que seu corpo seria um companheiro fiel nessa escuta. O corpo, que tanto tentou alertá-la de que algo não ia bem, finalmente começava a ser acolhido.
Cá entre nós
Eu já ignorei, e ainda ignoro, vários alertas do meu corpo. Embora saiba diferenciar o que é um sinal de alerta urgente e relevante, há pequenos desconfortos que insistem em voltar — e que sigo adiando (mas que prometo resolver antes de me aposentar).
É possível que você também conheça essa sensação: seguir em frente e fingir que está tudo bem, mesmo quando o corpo grita que algo está errado.
Para mim, os maiores sinais são a tensão nos ombros e no maxilar, dores de cabeça, e a necessidade incontrolável de ficar sozinha, em silêncio e sem fazer nada. Para você, pode ser uma dor nas costas, um nó no estômago, pernas que parecem perder força. Cada uma sabe quais são esses sinais. O que nem sempre sabemos é escutar o que eles estão dizendo.
Aprendemos a silenciar o desconforto. Trabalho, distrações, listas intermináveis, conteúdo sem fim e uma atenção disputada 24 horas por dia. É claro que nosso corpo, coitado, não consegue nem competir com tanta coisa ao mesmo tempo. E vai sendo deixado de lado.
Porém, se tem algo que a meditação tem me ensinado, é a prestar atenção às sutilezas que habitam aqui dentro. Uma respiração mais curta quando estou sobrecarregada. Um nó na garganta em certos momentos desafiadores. A tensão que se acumula nos ombros. Cada desconforto me diz algo, nem sempre uma grande revelação, mas sim como um lembrete: tem algo que precisa ser sentido, reconhecido, e cuidado.
Vivências difíceis deixam marcas que o corpo registra sem avisar. O Dr. Bessel van der Kolk, autor do livro O Corpo Guarda as Marcas, dedicou sua carreira a estudar como crianças e adultos se adaptam a experiências traumáticas. Em um de seus vídeos, ele comenta:
“O efeito persistente do trauma é que você continua reagindo a pequenos estressores como se sua vida estivesse em perigo... A maioria das pessoas mal percebe que suas reações atuais estão enraizadas em experiências do passado.” — Bessel van der Kolk
Muitas vezes, o corpo guarda aquilo que a mente tenta esquecer.
Como começar a ouvir os sinais do seu corpo com mais atenção?
Você já entendeu que muitas sensações físicas são sinais importantes e que merecem escuta. Então, aqui estão três atividades simples para cultivar uma observação mais compassiva com você mesma:
Faça um escaneamento corporal breve
Separe alguns minutos do seu dia para fechar os olhos e simplesmente perceber seu corpo. Se possível, associe essa prática a outro hábito: ao acordar, durante o banho, lavando a louça ou antes de meditar. Observe tensões, dores, respiração e energia.
Dê nome às emoções
Poucas de nós fomos ensinadas a nomear o que sentimos. Aprender essa nova linguagem emocional exige vocabulário, prática e escuta. Exercícios de escrita, meditação e terapia podem ajudar a dar nome ao que você sente. Mas tudo começa com permitir-se reconhecer: “sinto tristeza”, “estou frustrada”, “estou insegura”.
Acolha o que você sente
É bastante comum que emoções e sentimentos sejam classificados como bons ou ruins. Achamos que tristeza é fraqueza, que raiva é descontrole, que ansiedade é exagero. Mas todas as emoções são saudáveis, importantes e extremamente ricas para o nosso processo de autoconhecimento. Entender as crenças e pré-julgamentos sobre o que você sente, é um bom caminho para permitir-se sentir.
Revise seus hábitos básicos
O corpo costuma apresentar sinais quando algum hábito essencial está desregulado ou ausente. Há práticas que impactam diretamente o nosso bem-estar físico e emocional — como sono, alimentação, atividade física, hidratação e descanso. Quando um desses pilares não está sendo cuidado, o corpo sente.
Os sinais podem surgir na forma de irritabilidade, dificuldade para dormir, ansiedade em períodos de alimentação desequilibrada ou cansaço extremo quando não há espaço para repouso ou movimento. É claro que manter todos os hábitos em perfeita harmonia é difícil, mas vale a pena escolher pelo menos três que funcionem como suas âncoras — e fazer o possível para mantê-los consistentes.
Procure ajuda quando necessário
Sintomas recorrentes de dor, cansaço ou desconforto merecem atenção. Em vez de ignorá-los ou normalizá-los, busque apoio profissional. Um olhar especializado pode ajudar a identificar causas físicas, emocionais ou comportamentais por trás desses sinais e orientar os próximos passos com mais segurança.
Como a meditação pode ser aliada
A meditação pode ser uma grande aliada na auto-observação. Ela cria um espaço para contemplar seu corpo, pensamentos e emoções com menos julgamento. Você aprende a observar, a respirar com mais profundidade, e a escutar com mais gentileza.
Com o tempo, a meditação pode ser uma ferramenta transformar a nossa relação com o próprio corpo. De algo que você tenta “consertar”, o corpo passa a ser uma moradia mais segura.
A meditação “Conectando-se com suas Emoções”, da plataforma Serenara, pode ser um bom começo nesta jornada.
Com carinho,
Valentina
Referências
Bessel Van der Kolk. O Corpo Guarda as Marcas.
Bessel Van der Kolk. "How the Body Keeps the Score on Trauma". Big Think+.